sexta-feira, maio 28, 2010

Maddi

A garganta da garotinha havia sido cortada com uma lâmina velha. Enquanto o sangue escorria pelo sapato do assassino, uma outra garotinha estava andando por uma praça cheia de pombos. Maddi cantava. Tinha a voz mais bonita entre as garotinhas de sua escola.

Os sapatos do assassino levantavam e abaixavam conforme ele dava passos. Os pombos gorjeavam. Não entendiam como eram portadores de doença. Tinha peitos estufados e bicos cheios de miolo de pão. A menina cantava em tom maior. Em tom menor. Em sussurros. Fechava os olhos na parte que mais gostava. Colocava os cabelos atrás das orelhas no refrão. Alisava o nada achando que a música libertaria todas as maldades do mundo. Entoava sons como se as coisas ruins corressem caso ouvissem melodias.

Os sapatos do assassino poderiam se despedaçar por alguma mágica, pela força do pensamento ou por desgaste. Mas eles se levantavam e se abaixavam conforme davam passos. Talvez fosse culpa do coração quebrado, dos traumas infantis ou da natureza animal que ele carregava cravada em sua mente, como uma marca d’água. Não era o matar que dava prazer, era a surpresa. Quando o corpo percebia que já não poderia mais viver, ele dava espasmos. Lutava como se pudesse arrebentar e libertar-se de toda a pequenez física. Ter controle sobre isso, ver as fagulhas estourarem como se pudessem se alforriar, trazia deleite. Ele queria explodir. Queria ser pego de surpresa, queria ver o risco que passava perante os olhos antes de fecharem.

Maddi olhou para os sapatos e sorriu. Nos seus olhos, nenhum risco passou. Nenhum espasmo foi visto. Quando ele cortou sua garganta e o sangue espirrou, os pombos voaram e ele teve a impressão de ouvir uma nota além. O corpo caiu e o silêncio congelou mais tempo do que ele queria.

Depois, cantarolou a música que tinha escutado ela sonorizar. O refrão ficava na mente. Os sapatos levantavam e abaixavam conforme ele dava passos.



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quarta-feira, maio 26, 2010

berflogin

"Eu nunca vou alcançar o som" - ela pensou na ponta dos dedos enquanto levantava a mão. Então, se abaixou e olhou para cima. O teto estava ok. As paredes estavam certinhas. O dia aparecia e ela não sabia por onde começar. Aí ela achou um papel enroladinho na mão que segurava um Berflogin. Dizia que "a canção que naturalmente tem de permanecer não cantada, não falada, já era a canção do silêncio". Beijou a ponta dos dedos e foi dormir.



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terça-feira, maio 25, 2010

O rapaz

Artigo da revista Rolling Stones sobre o homem churros (24cm dormindo e 34 acordado): quando ereto, o pênis gera tanto calor que é capaz de esquentar as mãos à uma distância de 15 centímetros.

Ao ler isso, Artur desejou comer marshmallows, mas só encontrou receitas de bolo de caneca de microondas.



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segunda-feira, maio 24, 2010

Sem sinal de fumaça

Quando Lucas foi empurrado pelo carrinho de rolimã ladeira abaixo não sentiu seus calcanhares serem quebrados.

Achou que sangue era xixi de pombo. Ele achava que adrenalina mudava o sentido das coisas.



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domingo, maio 23, 2010

Canto para Oxalá

Em um dia claro do ano de 2022, Carina descobriria um buraco no meio do varal da cortina de sua janela. Seria um buraco puído, com cheiro de madeira molhada e com cor de pente envelhecido. De dentro do buraco ela retiraria um fiapo de linha e dessa linha ela ouviria um sininho batendo do outro lado.

Uma. Duas vezes. Como se marcasse o tempo. Ela tentaria puxar com mais força, mas a intensidade continuaria a mesma. Uma. Duas vezes. Como se marcasse a vida.

Carina colocaria primeiro o olho esquerdo e não veria nada. Depois colocaria o direito e notaria um pequeno risco a correr. Em um dia claro do ano de 2022, ela teria o primeiro vislumbre de como seria estar dentro das coisas. O sentido opaco. O eco pleonástico. As batidas que viajariam por entre seus pulmões, deixando-a tensa. Ainda com a cortina na mão, ela puxaria o fio com mais força, querendo para si todo o cursor de dentro. Quase arrebentaria, quase cairia, quase teria esquecido. Mas o vento das mesmas coisas que ela desejava assoprou em sentido contrário e ela, tonta, desceu aflita da escada.

Essas coisas interiores a lembrariam de que não era permitido ir além, por mais forte que fosse a vontade. Então ela colocou a cortina dentro da máquina de lavar roupa e sentou, a esperar pela vez do amaciante. Dali em diante, por mais que quisesse, ela nunca mais chegaria perto de buraco nenhum.

Havia descoberto que seus desejos deveriam ficar distantes. Só assim, de vez em quando, ela teria permissão de sentir, ao menos, o cheiro da madeira molhada.



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sexta-feira, maio 21, 2010

Para o homem ali da esquina

Ele havia lido um aviso para o homem ali da esquina e desde então a frase pernoita sua mente. "Havia sorrisos magros e sorrisos gordos. E no meio, havia dentes."



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quinta-feira, maio 20, 2010

O 100

Não é permitido
viajar nos degraus.
Mas na janela pode.



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quarta-feira, maio 19, 2010

Analítico

Quando o ponto cruzou a esquina, a reta já estava perpendicular. Aí em nome dos dois pontos, a reticência tornou-se circular.



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terça-feira, maio 18, 2010

ARE MI

Havia flores e havia menta. E havia a lua pequena e transparente do pedaço dali. Da parte dos botões, das falas. Do livro de ouro da mitologia.

Havia folhas e havia sal. O branco dos grãos e a pequena lua transparente do pedaço dali. Da parte do diminutivo do astro. Da superfície que havia quebrado os ossos. Do engolir para dentro.

Alguém havia enxergado uma perna caída perto de uma duna. Fazia tempos que a carne estava exposta, mas não havia bichos. O membro estava congelado, cristalizado. Mumificado por tatuís.

Um pai a denominou Are e uma mãe a batizou de Mi. Ninguém liga para seu nome porque ela senta todos os dias perto do canal e ordena conchas da menor para maior com uma capa de invisibilidade. E a capa exposta é feita de algodão e bolinhas amarelas. Ninguém a vê porque ela simplesmente não quer. E o querer nesse tempo é a arma mais potente de seres e não-seres.

Não foi ela que encontrou a perna nem foi ela que gritou. Mas ela havia testemunhado também. No tempo onde havia caules e havia areia. Da parte das versões inacreditáveis. Da força do pensamento.

Os dedos da perna estalavam por vontade própria. O calcanhar. A parte superior do peito do pé. Os tatuís escondiam-se.

O pai que a denominou Are e a mãe que a chamava de Mi não sabiam, mas ela foi até lá e olhou para o membro caído. Havia raízes e havia menta. E havia a lua pequena e transparente do pedaço dali. Da parte onde seus cabelos faziam cócegas na orelha, no queixo. No calcanhar do órgão derrubado.

Naquele tempo, as pessoas bocejavam com boca fechada. Riam com sorrisos fechados e contentavam-se com dias longos. Quando os tatuís voltaram e começaram a subir pela batata da perna, ela viu que o corpo seria condenado caso ficasse ou desaparecesse. Não havia mais flexibilidade nem coerência. Os estalos eram desorganizados e esporádicos. Ela queria muito mais do que ver. Ela queria tocar. Mas não podia porque os tatuís já levavam o membro para outro monte.

Não foi ela que encontrou a perna nem foi ela que gritou. Mas ela havia testemunhado também. No tempo onde havia capas de invisibilidade e frios no estômago. Picadinhas na pele e unhas limpas por aveias.

E ainda por algumas vezes, alguém acha que a vê ordenando conchas da maior para a menor. É que quando faz muito calor, ela tira só o capuz e deixa aparecer somente o cabelo e a cabeça. Faz cócegas.



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domingo, maio 16, 2010

O desejo de Natal

Veio a manhã para a mulher de pés azuis. Tocou as veias e encheu o pulmão. Ela estava presa por um cordão de notas coloridas que flutuavam pelas paredes mofadas. Ir para o mundo selvagem ou acobertar-se nos tijolos? Havia um céu de cinquenta e nove luas que de tão estampadas pareciam coxinhas de galinha. A mulher de pés azuis queria sentir a gordura e o escorregar entre os dedos, mas estava tudo tão longe e perto, embaralhados pelo que as pessoas chamam de vida urbana. Como rasgar as notas? Como afugentar as vespas cintilantes?

A sua cabeça enchia como espumas de cerveja. Os fios de cabelo levantavam-se como farol alto. Os pés azuis sentiam o piso, apesar de desejarem o azulejo. Por mais que os anos passassem, era tudo igual ao verão de dezessete primaveras. Ela ainda se via como no reflexo do espelho. Mas de tão comprido que estava seu cabelo, ele vivia se conectando com o azul dos pés. E quando eles se tocavam, ela derramava lágrimas de purpurina. Doíam para sair, mas eram brilhantes.

Joana Bazzi Verly Lemec parecia ter sangue nobre, mas gostava mesmo era de enfiar dedinhos nas orelhas de aves congeladas. Alguém tinha lhe concedido um desejo de Natal.



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sábado, maio 15, 2010

Tequila shot

Eram as tanajuras que corriam pelo chão cinza. Havia um homem parado de calças brancas que balançava as pernas querendo entrar pela porta da frente. Glauce não o deixaria entrar. Estava apavorada porque ele não tinha cabeça. Como um corpo de calça branca podia bater na porta com uma pulseira de contas? Era evidente. Ele estava vivo pela metade. As batidas só ela e as tanajuras sentiam. Uma. Duas. Três vezes.

Se ela fingisse não ver, ele poderia ir embora. Mas ao invés disso, ele trouxe mais dois corpos. A insistência era algo que a irritava. Todos sem cabeça. O que aconteceria se ela abrisse a porta? Como eles falariam alguma coisa? Seriam as palavras desnecessárias? Talvez eles pudessem sentar e cruzar as pernas. Mas ela se sentiria confortável com pernas avulsas em sua sala?

Ao coçar os olhos percebeu que havia filas deles. A branquidão confundia suas íris. Alguém poderia dizer que as pernas lembravam polvos, mas para ela nada mais era do que estruturas retas que vibravam em ritmo sincronizado.

Pareciam dançar ao compasso de batidas incessantes. Ela foi então até o quarto e pegou um lençol puído. Colocou a mão na maçaneta. Viu que eles tinham os pés nus, porém sujos. Não gostou. Passou a chave de novo. Prendeu o lençol na porta com pregador e dirigiu-se ao processo de tequila shot.

As tanajuras ainda corriam pelo chão cinza quando ela aumentou seu Real Player e quase explodiu suas caixinhas de som. Depois bebeu e ficou imitando os corpos sem cabeça só de sacanagem. Eles ficaram irritados, é claro.



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sexta-feira, maio 14, 2010

João

Quando João cruzou o céu com seu bote aéreo havia as horas paradas. Elas se espreguiçavam pelo ar como quem tem preguiça em dia de sexta-feira. E havia pizzas e havia conversas sobre o que aconteceria com seu futuro. Mas João não queria saber. Ele cruzava o céu com seu bote aéreo e às vezes abastecia o estômago com nuvens frias. No céu, havia muitas palavras de duas cores. E ele passava o dedo nelas só para se entreter.



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quinta-feira, maio 13, 2010

Dookie

Conversa de duas pessoas comendo ovo colorido na padaria:

- Sabe o que é mais engraçado disso tudo?
- Você não sabe amarrar os sapatos?
- Não.
- Você não sabe dar cambalhotas?
- Não.
- Você gostaria de comer um pinheiro?
- Não.
- O que é?
- Você sabia que o Brasil é o mais exportador de palitos de dente do mundo?



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quarta-feira, maio 12, 2010

Autobiográfico

Não eram as fotos tiradas, os sapatos calçados nem a comida degustada. Ela sentia falta dos lugares. Os lugares invisíveis, o cheiro desmistificado, as passagens secretas, as cores que vibravam destoantes pelo ar. Era a história que o mundo trazia que não estava em casa, que não estava em mares cibernéticos nem em pensamentos criados.

O fragmento autobiográfico era picado em fatias. Ela podia inventar algumas frases para disfarçar a realidade, mas toda a força do coração pulsante vinha do desconhecido. Da vontade estranha de partir. Da angústia. Do desejo. Da coleção de sensações que se tem quando o mundo chega de mansinho e te apresenta ao Mundo.

Era o máximo que podia permitir conhecer. E quando acordou no dia seguinte achando que a vontade tinha passado e que poderia enfim voltar às letras juntadas, o pós-sonho indicou o caminho. O pós-sonho. Aquele onde abrimos os olhos e lembramos de uma palavra. Aquele que às vezes nos remete a fragâncias. A imagens. A sorrisos nos cantos dos olhos.

Mas chovia. E tudo o que ela podia ouvir era alguém indie gemendo ao longe.



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segunda-feira, maio 10, 2010

Para longe

Com o intuito de aparar as dores, partiu o portão ao meio e colocou um aviso dependurado que flutua quando se toca a campainha: "Eu não volto já".



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sábado, maio 08, 2010

Cara, bolas.

Nos dias azuis, o cansaço era tão grande que muitas vezes os meninos comiam carambolas só para sentir o gostinho aguado de querer não pensar em nada. Às vezes funcionava, às vezes dava mais cansaço por mexer muito a boca.



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quarta-feira, maio 05, 2010

Ali

Toda vez que aquele peixe ali mergulhava, havia no grande céu nuvens transparentes. Dessas feitas de fumaça incandescente. E quando todos se perguntavam como e onde aquilo havia acontecido, vinha do mar uma voz titânica que dizia que as coisas não se perdem, elas se reencaminham.



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terça-feira, maio 04, 2010

C.

Um homem de vermelho com outro de laranja:

# Minha casa verde está se movimentando de baixo pra cima e as paredes brancas descascam como baralhos.

# Já provou álcool de cereais?



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segunda-feira, maio 03, 2010

Coisa de um homem só

O filme de um homem só apodreceu no youtube como trailer. Nunca foi finalizado. Agora ele tem esse prazer enorme de fazer cruzadinhas.



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domingo, maio 02, 2010

Entre os dedos

O que o homem de blusa azul não sabia era que suas chaves não eram mágicas. Ele abriria a porta, a fecharia, trancaria algumas vezes, destrancaria outras e chamaria um chaveiro em dia de chuva.

Elas só organizavam seus pensamentos. Elas balançavam ao ritmo das pernas. Ao ritmo do peito, das mãos soltas que carregam pastas de papéis recicláveis. As chaves eram como experimentos. Tubos de ensaio para palavras que nunca existiram, fórmulas para uma física sem química. As chaves pesavam entre os dedos para que os diálogos fluíssem em esferas sociais, para que o homem de blusa azul pudesse ter sua oralidade expandida e seu respeito reservado.

Foi somente quando elas caíram do meio-fio para outro meio-fio, por uma vertigem não-identificável, que ele viu que as chaves não eram amuletos nem tinha especialidade. Quando a cabeça do metal encontrou o concreto e quicou algumas vezes, ele foi sacudido por dentro, percebendo que as palavras eram dele, não do objeto.

Ficou um tempo piscando.
Piscando.
E piscando.

Depois pulou o muro de casa e não dormiu.



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